Se a filosofia é impotente para resolver plenamente o seu próprio problema, há, porventura, outro meio a que pode o espírito humano razoavelmente recorrer para a solução de um problema tão premente?
Apresenta-se a religião, e especialmente uma religião entre as religiões, a qual nos fala de uma queda do homem no começo de sua história, e afirma esta verdade - bem como todo o sistema dos seus dogmas - como divinamente revelada. Quanto à possibilidade de uma queda do espírito, em geral, isto é, quanto à possibilidade do mal moral, do pecado, basta lembrar que o ser criado pode, por sua natureza, desviar-se da ordem: porquanto há nele algo de não-ser, de potência , precisamente pelo fato de ser ele um ser criado. E o livre arbítrio proporciona-lhe o modo de realizar essa possibilidade, a saber, proporciona-lhe o modo de desviar-se efetivamente do ser, da racionalidade, enveredando pelo não-ser, pela irracionalidade. Quanto à realidade de uma queda original do homem, remetemos ao fato da Revelação em que é contida. Da Escritura e da Tradição, garantidas pela interpretação da Igreja e sistematizadas pela teologia, evidencia-se, fundamentalmente, como o homem primigênio não só teria possuído aquela harmonia natural , de que agora é privado, mas teria sido outrossim elevado, como que por nova criação, à ordem sobrenatural , com um conveniente conjunto de dons preternaturais . Noutras palavras, o homem teria participado - com uma natureza extraordinariamente dotada - da vida de Deus, teria gozado de uma espécie de deificação, não por direito, mas por graça. E evidencia-se também que - devido a uma culpa de orgulho contra Deus, cometida pelo primeiro homem, do qual, pela natureza humana, devia descender toda a humanidade - teria o homem perdido aquela harmonia e a dignidade sobrenatural, juntamente com os dons conexos. Há, portanto, uma enfermidade, uma debilitação espiritual e física na natureza humana, essencial desde o nosso nascimento, e que deve, por conseguinte, ser herdada. Basta, por exemplo, lembrar como, pela lei da hereditariedade, se podem transmitir deficiências materiais e, por conseqüência, também morais: deficiências que não dependem dos indivíduos, visto que eles a sofrem. O pecado original, pois - que importa na privação da ordem sobrenatural, isto é, na privação do único fim humano efetivo, até ao sofrimento e à concupiscência, quer dizer, até à vulneração da própria natureza - voluntário e culpado em Adão, seria culpado em seus descendentes, enquanto não quiserem servir-se das misérias provindas do pecado original como estímulo para a Redenção, praticando o Cristianismo, ingressando na Igreja. O aspecto da condição primitiva do homem, concernente à elevação sobrenatural, por mais super-eminente e central que seja no cristianismo, aqui não interessa. Com efeito, a elevação à ordem sobrenatural sendo, por definição, gratuita , isto é, não devida à natureza humana, bem como a nenhuma natureza criada, a privação da mesma, provinda do pecado, não podia causar vulneração em a natureza humana, nem a perda dos dons preternaturais E, logo, não podia suscitar o problema do mal, que temos considerado insolúvel pela filosofia
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